Da sensibilidade à exploração: o debate contínuo sobre pautas raciais na mídia

O BBB 24 veio com uma perspectiva totalmente diferente, pois apesar de contar com grande número de minorias, se torna uma desconstrução de tudo que os movimentos constroem pregam e lutam

Por Vivaldo Marques*
13/03/2024 às 10h44
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Foto: Reprodução/TV Globo
Foto: Reprodução/TV Globo

Estamos em 2024, e na vigésima quarta edição do Big Brother Brasil. Todos os anos, antes, durante e depois da exibição do programa da Rede Globo, algumas discussões se repetem. A "convivência" na casa gera conversas, assuntos e temas que por muitas vezes se tornam pauta nos mais diversos espaços de socialização.

Como de costume, o BBB acaba por mobilizar a discussão de diversos temas na nossa sociedade, seja por atores de forma individual ou ainda por redes de sujeitos organizados. Seu potencial de alcance é grande em determinar o que é assunto nos diversos ambientes sociais,  tanto físicos como digitais. E foi assim quando vimos, mais uma vez, reacender a discussão racial.

Na madrugada desta terça-feira (12), assistimos uma cena lamentável envolvendo Yasmin, Davi e Leydi. Vale ressaltar que o BBB é um dos maiores programas de entretenimento da televisão brasileira que mobiliza milhões de reais em prêmios, comercialização de anúncios e ações publicitárias e, ainda, milhões de pessoas acompanhando a rotina dos participantes em uma casa vigiada por dezenas de câmeras. São frases e ações que raramente vemos e ouvimos nos mais diversos espaços onde vivemos e convivemos, mas a dimensão pública desse tema exige que não naturalizemos.

No ano de 2021, o Big Brother Brasil 21 estreou com nove participantes negros, tornando o reality show brasileiro com maior número de participantes pretos. As mídias e os movimentos negros acreditaram ser um grande passo na mudança das lutas, pois tiveram uma grande representatividade em um programa nacional, pautando causas e temáticas para a desconstrução. Após anos de lutas para que a representatividade fosse vista de forma natural na grande mídia, enfim, o programa consegue unir o público periférico como grande forma de representação.

Uma análise entre o Big Brother Brasil 2020 e a edição do ano de 2021 e 2024, mostra que a edição anterior despertou na população a militância e o ativismo pelo combate ao racismo, levando em consideração as falas dos participantes Babu e Thelma e suas respectivas histórias. A edição 2020 fez com que muitas pessoas entendessem que o racismo realmente existe e que a estrutura em si é racista.

No dia 1º de fevereiro de 2021, uma fala da cantora Karol Conká causou polêmica, em uma conversa com Lucas Penteado. Lucas havia dito que o melhor amigo dele era Deus e Karol ironizou a fala do participante ao dizer: "e onde é que tava o seu melhor amigo no seu momento de loucura?". Algumas personalidades se posicionaram contra a artista após a fala, Jojô Todynho, por exemplo, disse que sua admiração por Karol havia "acabado" e que a estava deixando de seguir em mídias sociais.

Durante um almoço no dia 1º de fevereiro de 2021, mais uma vez, Conká se envolveu em outra controvérsia com Lucas Penteado. Lucas se juntou aos membros no VIP e Karol virou de costas após ele se sentar à mesa e disse à Lumena e a Pocah que jogaria água no ator se ele falasse algo. Indo em direção à mesa, Karol afirmou: Ao ver que as falas foram direcionadas a si, Lucas se levantou da mesa e pediu para ser avisado quando ela tivesse terminado de comer: "Melhor, se não sabe calar a boca, é melhor você sair mesmo", falou Karol.

O BBB 24, veio com uma perspectiva totalmente diferente pois apesar de contar com grande número de minorias, se torna uma desconstrução de tudo que os movimentos constroem pregam e lutam.

A postura 'empoderada' de Leidy é muito semelhante à trajetória de Lumena do BBB21 e a agressividade contra o participante Lucas Penteado. O ator, mais politizado sobre as relações raciais, ou seja, com mais letramento racial do que Davi, sugeriu uma união entre os negros como uma forma de fortalecimento diante dos privilégios dos brancos.

Uma afronta ao ideal de democracia racial ilusoriamente propagado no Brasil. A democracia racial é um mito atrelado à ideia de que a cordialidade brasileira possibilitaria harmonia e igualdade para brancos e negros. Lucas propôs uma união, tal qual fizeram os quilombos, essenciais para manter os sonhos de liberdade dos negros.

Bastou isso para ele ser condenado por outros participantes daquela edição, inclusive os pretos Nego Di e Lumena. Ela, uma psicóloga, com leituras sobre racismo e desigualdades raciais, forjada na militância negra e na arte dos blocos afro da Bahia, se colocou totalmente contra Lucas, mesmo quando ele foi alvo das mais pesadas violências por parte da rapper Karol Conká.

Trazendo essa correlação, barracos entre Leidy e Davi só interessam ao racismo. A sister disse que o brother faz tarefas domésticas para jogar na cara dos outros e o chamou de manipulador. O baiano rebateu e disse que, se isso fosse verdade, teria saído no paredão. Os dois alteram a voz e Leidy disparou: "A gente é preto, e você faz direitinho o que as pessoas querem". Ela planejava usar a pauta racial como estratégia contra o brother há dias. Em resposta, Davi retrucou: "Você é uma mulher baixa".

Não é para assistir a briga entre dois jovens pretos, da periferia do Brasil, sob o olhar protegido e sorriso satisfeito da famosa, que tantas pessoas lutam diariamente contra o racismo e todas as formas de desumanização de pessoas negras neste país.

É preciso entender a construção de uma narrativa, um discurso e uma pauta política com base na orientação da emissora, na onde a discussão desse assunto hoje em dia é muito mais relevante do que dizer o porquê as pessoas acabam mudando de postura e como elas se sentem publicamente ameaçadas, dentro do olhar ativista e isso é importante e precisa ser discutido e falado.

Segundo o psicologo Tiago Cruz,  fenômeno de um indivíduo negro defender um branco em vez de outro negro pode ser resultado de vários fatores psicológicos, incluindo internalização de estereótipos negativos, desejo de pertencimento e aceitação social, e identificação com o grupo dominante. Isso pode refletir uma dinâmica complexa de autoimagem e poder social dentro de contextos culturais específicos. Em resumo, a psicologia pode explicar esse comportamento como uma manifestação de influências sociais e identitárias internalizadas.

"Pode-se perceber que o Big Brother hoje, de 2024, ele retrata o Big Brother dos anos 2000, 2001, 2002, quando os brothers, eles se ofendiam, usavam a palavra de baixo calão, sabe? São coisas que hoje não podem ser mais aceitas, né? E a própria Lady, ela retrata isso. O Big Brother de alguns anos anteriores já mostrou pautas muito mais importantes, de mais relevância, mas atualmente é algo que não pode ser aceito, né? O bem estar psicológico, você conviver com várias pessoas que não são de seu convívio familiar, pessoas que não se respeitam. Pessoas que estão sempre procurando ganho, intrigas, com o bem estar psicológico da pessoa que sofre É algo que pode afetar em comportamentos futuros e atitudes", disse.

A Globo não tem uma posição ativista há anos, e a partir do Big Brother Brasil a emissora deu espaço para os militantes mostrarem que também são humanos e como humanos podem trair, errar ou decepcionar os seus pares. Desse modo, o canal aberto tira sua posição de apoiadora e passa a escancarar um palco para negros tirando de si as responsabilidades.

*Vivaldo Marques é jornalista e repórter do Portal Muita Informação

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